Democrático como a mesa do bar
- CAB SALVADOR
- 28 de abr.
- 3 min de leitura
Atualizado: 26 de ago.
COBERTURA CRÍTICO-JORNALISTICA REVISTA SELECT
JOÃO VICTOR GUIMARÃES

É necessário que muitas forças bebam de variadas fontes e desaguem em conjunto se o intuito é fortalecer o corpo de uma cidade. No caso da classe artística, é necessário não apenas que signos sejam reelaborados, mas, sobretudo, que pesquisas sejam estruturadas e comunicadas. É inerente ao circuito, exercício e prática artísticos o encontro com o mundo, com o grande ou pequeno outro. Em todos os níveis, de museus a galerias, de acervos a ateliês, de colecionadores a artistas, da rua à rua. Tendo em vista que instituições e sujeitos com poder e dinheiro espontaneamente se aglutinam, percebemos que esse ato, de se aproximar, é necessário também para artistas independentes, entre si. Sem a prática de contatar, mixar experiências e receber o que não se espera, mas de que se precisa, a classe artística pouco ou nada se desenvolve.
No último dia 13/4, sábado, a cidade de Salvador pôde reencontrar-se. O bairro Dois de Julho, no centro da cidade, acolheu e projetou CAB – Circuito de Arte em Boteco. Democrática como uma mesa de bar, a iniciativa consiste em propor um circuito de botecos nos quais diferentes artistas apresentam seus trabalhos em diálogo direto e descontraído com o público. O Dois de Julho já é conhecido pela sua boemia e, especialmente num sábado, tem um público frequentador assíduo, além dos próprios moradores que interagem com o bairro e têm dele uma compreensão mais
ampla e objetiva, real. Uma visão capaz de perceber os mecanismos “internos” e ativá-los com maior capacidade de comunicação e sucesso. Percebe-se um mérito raramente alcançado em iniciativas do gênero: uma absoluta e orgânica interação com o bairro, isto é, tanto seu público “nativo” quanto transeunte interagiram de forma orgânica, fluída, interessante e respeitosa.
O que o CAB proporcionou foi, em síntese, uma aproximação de forma suave, inteligente e saudável. As pessoas sentavam se, conversavam, passavam e paravam, observavam as obras, perguntavam, tomavam uma cerveja com o/a artista… O CAB conseguiu que artista e público espontaneamente dialogassem sem a intenção de fazê-lo, digo, sem forçar-se a nada. Essa é a meta da maioria dos projetos culturais brasileiros na contemporaneidade: dialogar com o público em geral e sobretudo com aquele baseado no mesmo território em que a instituição ou evento acontece. Feito raro, que requer destreza e algo que não se compra nem se adquire facilmente: pertença. Os/as artistas participantes do circuito são fundamentais no seu sucesso pois apresentaram propostas de cunho popular. E o termo “popular” aqui tem como único sentido se referir àquilo que tem a capacidade de comover o maior número possível de pessoas.
A co-idealizadora e produtora do CAB Milena Ferreira, conclui que “um dos pontos principais do circuito é tornar o processo mais democrático, quebrar essa lógica do ambiente engessado da arte, do acesso às galerias que nem todo mundo acessa, de você ir visitar a exposição ver o trabalho final com todo mundo caladinho. Ninguém troca sobre, não conhece o artista… Então acho que esse é o ponto alto. Um outro ponto alto desse circuito é evidenciar o processo artístico. A proposta não era para trazer obras finalizadas, era para trazer o processo, um trabalho que não está finalizado. Um trabalho que o artista ainda está tentando entender os caminhos, para que aqui pudesse receber esses outros olhares, novas percepções para fora do cubo branco ou de qualquer outro espaço.
[...]
A experiência proporcionada pelo Circuito de Arte em Boteco nos revela que a cidade desamparada precisou se articular e produzir efeitos verdadeira e profundamente impactantes na sua vida, no seu corpo. O que e quem alimenta o corpo da cidade? A própria. Contudo, não pode continuar assim, não podemos ser ingênuos/as. Queremos ferramentas, oportunidades, dinheiro, visibilidade, condições materiais e imateriais, subjetivas, para artistas ainda não reconhecidos/as poderem trabalhar. Queremos, sim, que as instituições sudestinas se relacionem e invistam na classe artística soteropolitana e baiana. Queremos que a parcela vulnerável e carente da classe participe dos jantares, residências, conselhos, exposições, negociações.
A iniciativa de Milena e Busca beira, sim, a loucura e serve de constatação: ainda é preciso se descolar muito dessa difícil realidade institucional para ser artista independente em Salvador. A realidade com as demonstrações que tais artistas têm tido é uma pulsão de morte para muitos corpos, mentes e movimentos que têm no improvável a fonte de soluções inimagináveis e vitais. Há um abismo intransponível, sim, entre o que se vive no CAB, nas ruas do Dois de Julho e o que acontece em grandes feiras, exposições e galerias. Mas se fixar nessa realidade é despojar o corpo à morte. O que há para fazer é buscar a estrada que nos levará a transpor o intransponível. No livro Recursos da Esperança, Raymond Williams afirma que “ser verdadeiramente radical é tornar a esperança mais possível do que o desespero convincente”.
TEXTO COMPLETO EM :
Democrático como a mesa do bar - Revista seLecT_ceLesTe

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